AS CASAS RAÍZES

O mundão de gente que nasceu nas terras das comunidades Macuco, Pinheiro, Gravatá e Mata Dois aprendeu desde cedo que é preciso saber ir para o mundo e voltar para a casa. Não é de se estranhar que há muito tempo eles andam por vários lugares, trabalham em outros estados, outras regiões e até em outros países. Tem gente espalhada pra tudo enquanto é canto, me dizem. Nessas andanças, eles falam que ganham sabedoria, aprendem sobre vários assuntos, pessoas, atividades. Alguns passam a residir nesses locais, criam família, constroem casas por lá. Apesar de todas essas andanças, se engana quem imagina que eles se esquecem de suas raízes, estão sempre conectados às suas terras natais.

Fazem ligações telefônicas, se comunicam com frequência pelas redes sociais, se visitam, passam temporadas nas comunidades e, quando possível, se aposentam e voltam definitivamente. Nesse contexto, há casas que ficam alguns meses do ano fechadas, à espera dos donos e cuidadas por parentes; casas que envelhecem por falta de moradia prolongada e podem ser retomadas a qualquer momento; e outras que surgem, são construídas desde suas bases, mostrando que voltar é sempre uma opção válida.

Para além dessa dinâmica, aos que não conhecem o clima da região é preciso alertar que o ano se divide em dois momentos distintos e bem marcados: o tempo da seca e o tempo das águas. A seca tende a coincidir com a ausência da maioria dos moradores que se deslocam para atividades de trabalho em distintos lugares do país, aproximadamente entre o fim de fevereiro e o início de novembro. Desde a década de 1980, os moradores percebem que a seca tem se tornado mais longa e as águas tem diminuído consideravelmente. Há variação entre um ano e outro, o que tem alterado o regime das plantações. Ao longo do tempo, os córregos secaram, muitas práticas antigas tiveram que ser abandonadas e o acesso a água se tornou uma luta política. A despeito desse grande problema, a divisão do ano entre seca e z’água continua valendo, demonstrando diferenças climáticas e períodos de menor e maior concentração e movimento de moradores nas comunidades. O tempo das águas é tempo de casa cheia, de parentes e conhecidos que circulam na zona urbana de Minas Novas e nas comunidades. É tempo da alegria de rever os seus, colocar o papo em dia, andar pelo mato, relembrar dos caminhos, pessoas, histórias e causos.

Comunidade Quilombola Mata-Dois
Imagem: Alzira
Foto: Lori Figueiró

Diante dessa diferença, por inúmeras vezes, ouvi que as casas da região eram como as árvores do cerrado, as quais se enchem de folhas no tempo das águas, contrastando com a existência solitária da raiz e de algumas gaias no tempo da seca. Meus amigos me diziam que elas são casas raízes, seguindo a mesma dinâmica das vegetações locais. Na maioria das vezes, essas raízes são as mães, que permanecem nessas casas, construídas ao longo de muitos anos, fortalecida pelo nascimento e criação dos filhos.

É importante dizer que uma casa não se torna raiz de um dia para o outro, requer tempo. Tempo que constrói uma arquitetura e uma rede de relações, cuidados e ensinamentos que ficam guardados na memória. Nessas casas, os modos e os jeitos de cada família vão sendo transmitidos, garantindo que ali todo mundo é parente, mas nem todo mundo é igual. A melhor maneira de cozinhar determinado prato, a forma de plantar cada vegetal, os cuidados com os corpos das crianças, os valores que são necessários para enfrentar a vida constituem algumas das várias sabedorias cotidianas ensinadas nas cozinhas, à beira do fogão à lenha. Mães, pais, avós, tios e tias, madrinhas e padrinhos, vizinhos, irmãos, todos estão empenhados em ensinar o melhor para as crianças, que crescem com a atenção comunitária. Contudo, a relação com a mãe e sua casa marca um vínculo forte e único, que ganha destaque na forma como o parentesco é vivido e contado pelos moradores das quatro comunidades.

Comunidade Quilombola Macuco
Imagem: Herculana Ferreira de Matos
Foto: Jussara Costa

De acordo com meus amigos, mãe é sagrada. Ela não abandona, é com quem se pode contar para o resto da vida. Por mais que a maioria dos homens da região assumam seus filhos e sejam preocupados com a criação dos mesmos, o movimento para atividades de trabalho acaba por diminuir a frequência e a intensidade que vivem com os seus descendentes. Para além dessas ausências, os moradores das quatro comunidades dizem que o vínculo com a mãe é diferente de qualquer outro porque ela e o filho vivem juntos em um corpo só e essa experiência não pode ser igualada à nenhuma outra. A mãe aprende sobre o filho quando ele ainda está em seu ventre e para sempre se lembrará dele, uma vez tudo o que a gente vive no corpo a gente não esquece, dizem elas. Assim, as memórias de mãe e filho estão conectadas pela gestação e também pelo momento do parto, cuja dor faz com que elas se tornem mulheres fortes. De acordo com os moradores da região, a força de uma mãe abala o mundo, a maternidade prepara essas mulheres para enfrentarem desafios e lutas distintas, que podem surgir a qualquer instante. O parto é um momento inesquecível, cheio de significados e lembranças. De maneira geral, as mulheres afirmam que a mãe começa a conhecer seu filho antes de seu nascimento e passa toda sua vida se especializando em aprimorar esse conhecimento. Ela pesquisa os comportamentos do filho, seus gostos, suas semelhanças com os parentes, seu temperamento, suas atitudes. Para os quilombolas de Macuco, Pinheiro, Gravatá e Mata Dois a mãe é a pessoa que mais os conhece, sabe dos detalhes de suas personalidades, dos seus sentimentos mais profundos. Segundo eles, Deus fez cada um de uma maneira, não existe ninguém igual ao outro. A mãe é aquela que mais conhece a composição divina para cada um de seus filhos.

Vale ressaltar que cada filho é de um jeito, os dedos de uma mesma mão não são iguais. A casa raiz existe enquanto laboratório de observação dessas mães, que não apenas aprendem e pesquisam sobre os filhos como também os fazem viver e conviver com os irmãos, preparando-os para se relacionarem com outras pessoas que cruzarem seus caminhos. As diferenças são importantes e não podem ser desprezadas, o que leva essas mulheres a propiciam experiências e ensinamentos diferentes para os distintos filhos, a depender de suas características e necessidades, que são únicas e particulares.

Assim, as mães são aquelas que permanecem nessas terras, criando e preparando seus filhos para eles rodarem o mundo. A gente cria filho para o mundo, me dizem essas mulheres que passam suas vidas cuidando, observando e ensinando os filhos. Elas constroem casas raízes durante uma vida de criação, na qual vão enraizando no solo e permitindo que as folhas de suas árvores voem, retornando com a volta das chuvas. São elas que permitem que essas comunidades perdurem no tempo, que atravessem gerações e que os filhos andem pelo mundo todinho, mas saibam reconhecer suas raízes e voltar para a casa.

Por Yara Alves

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